sexta-feira, 21 de junho de 2013

da prisão (ou o avesso do avesso).

Não há como negar.
É diferente.
Olhar que encontra desencontradamente.
Cabeça baixa para não acompanhar a reação do corpo alheio.
Pensamento voando...
O desejo queimando onde ninguém mais pode ver.
E a timidez...

É outra coisa.
Atingiu outra pulsão.
Acessou as vias proibidas.
Encantou.
É isso. É o encanto.
Ainda há.
Em algum canto desprotegido,
inflamável.

Tão fácil distribuir sorrisos ao inconsistente...
Fugaz.
É livre o fugaz.
É desejável o fugaz.
É escorregadio o fugaz.
Escapa do olho vadio, iludido
que crê tudo ver, tudo alcançar e coibir.
Invade as cercas, quebra a ordem
da liberdade que prende.
Desobediência civil no coração.
Não é mais servil o coração.

Há uma castradora vontade de cativar-se
(Cativar-se: tornar-se cativo).
Cativar-se da vontade de estar.
Da arrebatadora e castradora vontade de estar.
Os sorrisos perdem a gratuidade.
Há o desvio do olhar.
Que tudo quer ver, mas não consegue encontrar.
É a timidez.

Não há como negar.
É outra coisa.


ou nas palavras de um forró dazantiga, bem mais simples:

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Sobre estar só.

Aprendi a ser só.

Aprendi porque me compreendia em um mundo onde não conseguia me comunicar. Aprendi porque não conseguia conversar racionalmente (e o mundo cobra racionalidade) ou porque nunca soube dizer com a boca o que digo com/no papel. Aprendi porque não me aceitava e o mais lógico, aparentemente, era que o mundo também não me aceitasse.

Com o tempo, aprendi (menos dolorosamente) a estar só. Era bom descobrir que música me desinibia; conversar sozinha, nos meus próprios termos; ser boa e gentil comigo, nas coisas que outros/as não faziam por mim; realizar pequenos caprichos; rir só, chorar só; misturar riso e choro sem parecer patética; estar em zona livre de medos e julgamentos. Era bom testar minhas próprias teorias, construir o teatro de uma atriz só...

Mas estando só eu era só. E tudo parecia ficção. Era tudo meu, mas o mundo não. Ele, essa coisa imensa lá fora, não tinha nada que eu pudesse dizer: isto é onde eu pertenço. Era comum olhar pras minhas mãos e percebê-las vazias. Foi ficando visível que eu estava vazia de mim.  

Descobri que, por mais concretas que fossem as pequenas coisas de estar só, ser só é muito maior e mais profundo. Minhas mãos precisavam de outras. Precisavam de mundo.  

E que crueldade desse mundo! Somos feitos sós, mas não para sermos sós. Contraditoriamente, embora feito de solidões que se juntam e se dividem, o mundo é quem diz que o limite próprio de ser é a solidão. O mundo também aprendeu a ser só.

Aprendemos a resistir e desaprendemos de ser sós. Mesmo sendo só, o mundo chama, porque sabe que não pode sê-lo. E então, nossas solidões vão se somando a outras. Até aquele momento que se confundem ou não se acham. É quando nossa solidão sussurra: ‘preciso estar só’.

Estar só pra me ouvir melhor,  pra fazer um afago na alma, um melhoramento aqui, um rearranjo acolá. Estar só pra me (re)conhecer, pra me concentrar, pra me retomar e pra caminhar. Sim, pra caminhar, pois há caminhos que só se fazem quando estamos sós.

Estou só, embora não seja. Estou indo ao encontro dos desejos, dos mais supérfluos e dispensáveis aos mais profundos. Mas sei que tenho hora de voltar, porque sendo só aprendi que não quero mais ser e para tanto, preciso estar bem com minha solidão. Preciso estar só.


Estou só, mas carregada de mundo.

terça-feira, 9 de abril de 2013

amor e a função fática da linguagem - carta à minha mãe


Oi mãe;

Nossa, há quanto tempo não uso esse vocativo. Parece estranho saindo de mim. É que essa não sou mais eu. Até tiveram algumas moças amadas que me adotaram como filha, cada uma de sua maneira e em seu contexto. Mas cê sabe, né: mãe mesmo, só minha Regina. Aliás, quero começar essas linhas fazendo uma pequena mudança na nossa relação: em vez de ‘senhora’, serás ‘você’, ‘tu’. Já tô um pouquinho crescida, sinto que já passamos daquela fase da menina filhota da mãe. Podemos ser amigas. É disso que isso aqui se trata.

De vez em quando, até involuntariamente, você vem até mim nuns lapsos muito grandes de memória. Remonto na mente alguns acontecimentos em questão de segundos, tudo seguindo a ordem cronológica. Nesses momentos, fica uma sensação de que não foram apenas 16 (dos quais pelos menos os primeiros quatro eu não lembro), mas uns 40 anos que estivemos juntas, lado a lado. Foi uma vida. Mas sinto muito por durante essa vida não termos tido tempo de deixar de lado nossas diferenças e desentendimentos e sermos mais amigas. Sei que você sabe que quando criança eu desenvolvi aquele típico amor edipiano por papai e era no colo dele que eu ficava bem, quentinha e segura. De alguma forma, isso me afastou de você na infância e eu achei por muitos anos que o Júnior era seu preferido. Como se não bastasse, fui uma adolescente trancada, difícil de conversar. Não conseguimos dialogar. E o clichê é verdadeiro: se eu soubesse o que sei hoje, que o tempo era curto, teria feito muita coisa diferente.

No entanto, escrever essa carta é assumir que você vive em algum lugar. Certamente aqui, no meu coração do tamanho da minha mão fechada, você está. Então, ainda é tempo de revermos algumas coisas. Temo que eu vá dizer muito do que você já conhece. Mas tem tanto tempo que quero te falar...

Pra começar, sabe aqueles 40 anos em 16? Foram minha primeira vida. Depois daquele julho de 2003, morreu uma parte tão grande de mim que eu tive de nascer de novo. Já são dez anos de uma nova Juju (como só você me chamava) e acho que essa é a primeira carta que te escrevo. Faço isso (escrever cartas) como já fiz com alguns amigos que não vejo há tempos, ou como já fiz com papai (porque ainda não consigo falar com ele), ou ainda com os sentimentos que a gente sabe que são maiores do que a gente (e aí fica difícil ter uma ‘conversa’ horizontal). Escrevo cartas quando as palavras imploram pra serem liberadas de mim, para remetentes difíceis de alcançar.

Quero te falar da vida no lado de cá. Na verdade, quero falar de como as coisas ficaram na sua ausência. Definitivamente você soube passar por esse mundo, porque é impressionante como você ainda tá aqui, em tudo. Cê sabe, o apartamento ficou grande, mas também é muito pequeno diante de tudo o que você nos influenciou a ser. Sua marca é muito grande. Nós ainda estamos perdidos.

Tem dia que a gente fala tanto no seu nome. Tem dia que a gente caça jeito. É que você tá em nós e, ao mesmo tempo, sobre nós, sacralizada. E é sem querer. Porque você era gente do jeitinho imperfeito que foi. A gente até imagina seus trejeitos e atitudes em algumas situações que vivemos. Condutas hilárias, certas, criticáveis. Ah, mãe... cê era tão sua, tão Maria Regina. Uma das maiores contradições em forma de gente que já conheci.

Papai continua daquele jeito, dono da razão de todas as coisas do universo. Matemático por pura definição e identificação. Pragmático demais, correto demais, forte demais, teimoso demais, difícil demais. Aquelas coisas que a gente sabe que são demais porque tem que esconder as que são ‘de menos’ e que ele não admite pra ninguém. Eu sei que você as conhecia melhor do que qualquer pessoa. Mas eu às vezes tento chegar perto, sabe. Ele sente falta da sua companhia e do seu companheirismo. Acho que você foi (e ouso dizer que ainda é) a melhor amiga que ele já teve. Mas a gente de carne precisa de um abraço de vez em quando e, na sua ausência, eu tento pelo menos segurar a mão dele, pesada e tão parecida com a minha. A propósito, você que sabia como lidar com o convívio, me manda a fórmula em forma de algum sinal. Eu tenho tentado, tem parecido impossível.

Jr, teu primogênito... é uma figura. Mãe, ele é feliz. Muito feliz. E sou feliz por ele. Perdeu o juízo, anda sem limites. O mundo pra ele é só o começo, todo dia. Eu e papai ficamos em casa com coração apertado de medo. Se você tivesse aqui, talvez ele maneirasse mais. Talvez não. Porque ele é assim e tá feliz. Só me resta ouvi-lo, rir com ele, aproveitar um tantinho da aventura dele pela vida. Ele cuida de mim, quando quer. Gosta de me agradar, como sempre. Ele tá mais individualista, cabeça dura, mas é a alegria dos meus dias. A gente inventa e descobre umas gírias novas e se pergunta se você as adotaria também, só pra entrar no nosso clima, como você fazia. Meu irmão, mãe, é o único que tenho (lembra quando você repetia isso pra nós, sempre?) e o maior presente que você me deixou. Mil vezes, obrigada.

Sabe, fico aqui me perdendo/encontrando em palavras... Inevitável lembrar de você. Elas, as palavras, são alguns dos teus maiores legados em minha vida. Nesses dez anos, eu me relacionei com elas com muito mais troca. Umas vezes elas me derrubaram, noutras, eu as desdobrei. Hoje acordei lembrando de etimologia e de como você fazia questão de ressaltá-la quando me ensinava. ‘Regência, de regere: regular. Os verbos são regidos por determinadas normas, traduzidas lexicalmente por conjunções e pronomes.’ você dizia. Perguntei se seu nome tinha origem etimológica próxima à da palavra regência. Você me disse: ‘Regina quer dizer rainha, em latim.’ Desde então soube que você era essa contradição: rainha na minha vida, sem nunca tê-la regido. Você o era porque era a mulher que eu mais amava e de quem eu seria súdita pelo coração, mas você não era capaz de me moldar. Hoje isso mudou um pouco. A Juju aqui sabe que você é bem mais rainha do que ela poderia um dia imaginar que você seria.

Da etimologia às normas gramaticais, ao rearranjo das palavras, aos neologismos e figuras de linguagem, à poesia dos versos e à prosa que lia nos teus livros... perpassei esses trilhos por sua influência direta e construí um amor incondicional pelas palavras. Por esse amor (que como todo amor, tem seus altos e baixos) venho descobrindo que nós duas temos muito mais em comum do que sabíamos antes. É algo que os números da matemática do papai nunca vão atingir. Isso explica a minhas péssimas notas na matéria dele, inexistentes, durante minha vida inteira, no seu português (depois da sua partida, tive um ensino médio de glórias na nossa língua pátria e quase fechei os cinquenta pontos no vestibular. achei que você gostaria de saber). Mas nosso amor pelas palavras nos aproxima em muitas outras coisas...

Nós duas sempre fomos muito conscientes da insuficiência delas. Você e eu, duas utópicas. Como eu te entendo, mãe! Cresci ouvindo que papai era a voz da razão nesse apartamento. Tudo na ponta do lápis, orçamento mensal calculado, anos e metas planejadas. Você era quem descarrilava de vez em quando do caminho. ‘Surtava’, começava a sonhar com umas coisas nunca pensadas antes nessa família, que não faziam nenhum sentido na lógica do Prof. Osvaldo. Mãe, quantas vezes vi você fazer defesas apaixonadas de ideias e projetos que pareciam irracionais aos olhos externos à ‘família exemplar’ e quantas vezes assisti você mesma os calar, pra não ver um possível barco afundar. Sabe mãe, eu de vez em quando tenho esses ‘surtos’. De vez em quando sou obrigada a bradá-los, como você fazia. Perdi o medo do enfrentamento em casa. Também não sou compreendida, como você também não era. Mas agora eu sei que razão que não se conecta com o coração não tem mesmo razão de ser. Acho que você suspeitava disso, mas essa é nossa diferença: eu escolhi ser dona das minhas utopias e usá-las como armas contra os nãos do mundo e até contra mim mesma. Você ‘escolhia’ o papai. Mas mãe, eu te entendo. Eu te entendo.

Sei também que nossas palavras, as que amamos, se misturam nas nossas lágrimas. Essas lágrimas que sempre nos deslegitimaram, que sempre nos enfraqueceram. Essas lágrimas-emoções, essas lágrimas-medos, essas lágrimas-confusões, essas lágrimas-inseguranças, essas lágrimas-tristeza, essas lágrimas-solidão... desarrazoadas sempre. Longas e muitas, sempre. Dizem por aí que somos tão parecidas... cabelos, olhos, sobrancelhas, testa, pêlos. Mal sabem das nossas reais semelhanças. E eu ainda acho que guardo mais traços do papai do que seus (sei que você concordaria).

Nos últimos dez anos, mãe, eu conheci Manoel de Barros, li um pouco mais de Drummond de Andrade, de Lispector, ressignifiquei Morte e Vida Severina na minha vida, ouvi Grandes Encontros mais profunda e apaixonadamente. Zé continua tocando na caixinha e queria aprender a tocar ‘Bicho de Sete Cabeças’ pra realizar teu desejo. Assisti a um show do próprio, na madrugada do meu aniversário no ano passado. Ganhei de presente ele e um pedaço enorme seu. Fui também um dia desses a um tributo ao Raulzito. Você teria adorado.

Me pergunto se a gente falaria hoje de Doces Bárbaros, Chico, Bethânia, Marisa Monte, Rita Ribeiro e umas outras coisas que tenho ouvido por aqui. Será que discutiríamos Beauvoir e Paulo Freire? Será que dividiríamos nossa inequívoca decepção com o PT? Será que você aceitaria o fato de que eu não desejo ter um carro, porque prefiro lutar por e usar o transporte público? Acho que inicialmente você reprovaria, afinal, 'qual mãe não quer pra filha uma vida melhor do que a que ela teve'? Mas sei que com um tanto de diálogo, você compreenderia meu ponto.

Aprendi a bater o chinelo nos jogos do Brasil na Copa, do jeitinho que você fazia. Aprendi a beber cerveja. Será que beberíamos juntas? Já fumei uns cigarros e lembrei que você um dia parou porque engravidou. Pois é, mãe, também amo sarapatel. E adoraria umas rodadas de carteado e política com você. Você comandava na casa da vó, lembra? De vez em quando, pratico aquelas suas manias de limpeza e varro cada cantinho da casa. Mas tem dias que deixo virar zona e acho que você morreria de decepção. Aprendi a usar lápis nos olhos. Ficam realçados e ainda mais parecidos com os seus.

Cê acredita, mãe, que beijei pela primeira vez com 17? Mais uma semelhança em nossas vidas. Fico imaginando o que você teria dito quando te dissesse que, com esses mesmos 17, comecei a namorar. Será que você teria gostado dos namorados que tive? Me apaixonei algumas vezes nesses 10 anos (provavelmente mais do que você em sua vida toda) e concluí (advinha?) que, apesar de todos os (muitos) pesares, papai continua sendo o homem da minha vida. E o mais louco é que ele não sabe e nem consegue enxergar. Fiz coisas que senti orgulho. Outras, nem tanto. Andei ‘saindo da linha’ e fiz umas coisas que no fundo desejo que você nem sonhe (se tiver visto de onde quer que você esteja, perdão mãe, mas tava vivendo).

Tô aqui com 26, ainda muito longe de ser aquilo que nós duas sonhamos que eu fosse. Cada dia mais velha de atitudes e mais menina de argumentos. Acabei lembrando que você com 27 tava parindo o primeiro filho. Espero, sinceramente, que nesse ponto não tenhamos experiências iguais (acho que você também espera). E mesmo com esses 26, rio muito e de muita besteira. Será que a gente riria das mesmas bobagens? Você era uma palhaça de carteira assinada, muito boba e cheia de presença. Era sempre notada ou sempre se fazia notar. A tia gaiata da família, a brincalhona dessa casa. Presumo que teríamos um longo caminho de piadas mal contadas e risos incontidos pela frente. 

Deixei Backstreet Boys (ou Bequebói, como você chamava) na adolescência (Jr, ao contrário de mim, continua vidrado nas Spice). Transferi todo aquele fanatismo pro Zeppelin. Será que você teria procurado incansavelmente o DVD recém-lançado pra me dar de natal, como fez em 1999? Na verdade, Zeppelin tem uns solos de violão e guitarra que acho que você ia se amarrar. Ah mãe, se você conhecesse a galera massa com quem me aventuro pelas ruas... Dizem que são loucos e revolucionários. Um pessoal que ocupa e faz manifestações, grita contra o governo e muito, muito mais, que se mobiliza e sonha... conheço gente que já apanhou de polícia numa dessas oportunidades, como quase aconteceu com você, na frente da Câmara Municipal. Aliás, sinto muito também por você não ter tido tempo pra me ensinar a ser atrevida, desaforada e a não ir embora pra casa entalada. 

Tem umas pessoas que a vida me deu nesses dez anos que já estou convencida de que vieram parar no meu caminho por obra sua. É com elas que aprendo a ser mais como você. Sabe aquelas utopias? Com essas pessoas eu descobri que ‘sonho que se sonha junto é realidade.’ Acho que se você tivesse tido a sorte que tenho no que diz respeito à amizade e companheirismo, você teria ajudado a estremecer Teresina. Dia desses, uns três anos atrás, estávamos eu e alguns desses amigos em um quiosque da cidade e tocou ‘Reggae do Maneiro’, dos Raimundos. A gente cantou junto e riu junto. Eu tive ali a clareza que aquele era um grupo com quem você iria zoar. Você amava essa música e perdi a conta das vezes que fez peripécias quando ela tocava...

Costumo dizer, especialmente a mim, que você vive por meio dessas pessoas. Cada um, com suas peculiaridades, me traz as melhores coisas suas. Sinto que nossas pontes, feitas de respeito, cuidado e amor, me levam até você. Através dessas pessoas, descobri suas outras moradas, além de dentro de mim. As coisas tangíveis mais bonitas do meu mundo, esses meninos e meninas, como você um dia foi. Não há coincidências. E aí, onde todos vocês se encontram, vivem as coisas intangíveis mais importantes na minha existência. Eu sinto o amor...

Ah, Maria minha, tantas coisas que nem poderiam mais ser as mesmas. Sábados sem seu bolo de chocolate. Noites sem o cuscuz mergulhado no leite. Você refletida no espelho da penteadeira, onde com um pente na mão, derramava toda sua vaidade. Tenho gravados na memória seus movimentos de quando cuidava dos cabelos, provavelmente a parte que você mais gostava em si. Gostava tanto de quando você colocava a cabeça no meu colo, pra que fizesse cafuné e te dengasse. O cheiro do seu cabelo nunca se esvaiu do meu olfato. Reconheceria a kms de distância. Cê sabia que ainda sonho com o dia que terei novamente tua benção e teu beijo antes de ir dormir? Sabia que ninguém nunca mais acariciou e amou minhas bochechas como você? E tem dias que daria tudo pra voltar ali, naquelas noites quando você dialogava, ainda que brigando, pelas minhas ocorrências no colégio, que você levava anotadas na sua agenda depois de uma visita surpresa aos meus professores. Você me deixava sem argumentos e escapatória e ameaçava dizer tudo pro papai. Eu ficava com raiva, mas me calava. Sim, eu voltaria ali, praquele momento tão trivial, mas tão nosso e que é hoje apenas uma lembrança de você por aqui.

Aliás, mãe, voltando ao nosso apartamento e aos sábados, papai e Jr saem, cada um no seu carro (pois é, Jr tem um carro) e eu fico aqui, no quarto. Tem sido assim nos últimos 3 anos. Cê sabe que sempre curti uma solidão no meu canto. Mas tem dia que nem é curtição. Acho (sinto) que tô sozinha, mãe. De vez em quando bate um vento frio na janela, aquele ‘frio que suplica um aconchego’. Tem dia que queria um xodó de namorico, mas na maior parte das vezes, penso que aquela brisa passando pra me acariciar são suas mãos me certificando de que você tá sim em casa, comigo. Cê já deve ter notado que eu danço sozinha na sala e que canto alto e desafinado, pra ensurdecer a vizinhança. Sei lá, é meu jeito de ser eu, de ser só e até de ser feliz, já que a solidão muitas vezes é o que me resta. Caso você não tenha visto, sempre olho pra sua foto, ainda mais nesses dias, enquanto converso com você. Você, minha companhia permanente.

Já andei te procurando por aí. E às vezes acho que você se esconde nas coisas que eu não consigo entender. E entre muitas outras coisas, eu queria entender porque lhe vejo tão nitidamente ali, no limite do azul que separa o céu do mar e, logo eu, nessas condições, moro na única capital nordestina sem mar. Nessas horas, acho que você vive tão longe, inatingível. E depois dos últimos acontecimentos (penso que você já deve saber), adquiri certo medo de pegar a estrada pra chegar até o litoral, pra chegar até você. Quando chove, me pergunto se você tá protegida, se tá sentindo frio. E aprendi vivendo e por você que o choro não necessariamente é uma tarefa exclusiva. A gente chora enquanto canta, enquanto ri, enquanto lava a louça, enquanto pega um ônibus, enquanto arruma a mochila, enquanto tira as espinhas do rosto... enquanto escreve. Sobre choro eu sei. E tem sido mais difícil segurar com as últimas perdas.

Será que você vai achar enfadonho se eu falar de saudade? Eu sei, eu sei... eu venho falando a mesma coisa há dez anos. Mas você também deve sentir. Poxa, já são dez anos (que parecem um século) que a gente não se vê. Pior é saber que é pra nunca mais. Mas mãe, para além de um inconformismo violento que às vezes me arrebata pela tua partida prematura, que te deixou tão longe de ver as muitas coisas que você sonhou em ver e que nunca vai me permitir te ver velhinha, olhando pra trás dizendo que tudo valeu à pena, é tudo sobre saudade. Saudade que nunca regride, não dá um tempo, não arreda o pé, arranha, perfura, esquarteja, espanca e noucateia o coração.

Onde é que eu encontro outro amor igual ao seu? Aquele que se preocupava até se eu tava aprendendo a lavar minhas calcinhas? Quem mais se preocupa com minhas pequenezas? Quem mais me beijaria pelas minhas grandezas do cotidiano? Quem mais pra me chamar de Juju, querer conhecer os meus detalhes, pensar em tudo pra me ver sorrir? No meio das minhas crises, eu não conseguia enxergar que você tava ali o tempo todo pra mim, que seu amor não falhava. Quem mais pra se esforçar em me dizer as coisas que eu precisava saber sem me machucar? Quem mais pra gritar nessa casa a cada vitória minha, por menor que fosse? Eu tento gritar pelo papai, pelo Jr. As conquistas deles são minhas. Mas a verdade é que eles não gritam por mim. Só você faria. Só você era assim. Me diz, mãe, quem mais pra dá meu primeiro sutiã e ver algo numa loja e lembrar da Juju? Eu sinto falta de cada coisinha, que hoje é cada coisona...

Só eu sei o vazio que você deixou e a vida minha que você levou praí, onde você tá. Ninguém preenche nem traz de volta. E não consigo evitar de pensar que mesmo que eu só viva teus 45, ainda assim terei vivido mais anos sem você nos meus dias do que com você. Por isso preciso achar que a gente se comunica, conversa, que a gente se entende, que a gente é amiga. Por isso escrevo essa carta, mesmo sabendo da impossibilidade da resposta. Meu coração precisa saber que não se perdeu do teu. Escrevendo-te, quero acreditar que você pode me abraçar (e que saudade do teu abraço!) nas nossas palavras, as que você me ensinou a amar.

Lembra aquele dia que quando eu tinha uns 9 anos, abri um dos seus livros e tinha a letra de Domingo no parque, do Gil? Eu te disse, encantada: ‘olha, mãe, a Juliana com um sorvete na mão’. Você me disse: ‘Juju como tu.’ e me beijou, com o afeto de sempre. Mãezinha, ah se você pudesse dimensionar o quanto tua Juju queria te rever... não sumiria por tanto tempo, nem teria ido. Eu sei, não era você quem decidia...

Tem tantas coisas mais que te escreveria. Eu tenho 26 anos de amor acumulados, dez dos quais eu fui privada de demonstrar. Ando meio perdida. E continuo fazendo tudo errado. Eu não sei me acertar, mãe. Nem me cuidar. Pois é, ainda precisava de você, afinal. Mas tô deixando a vida me bater e me ensinar. Tô quebrando a cara feito uma condenada e ainda não rompi meu círculo de melancolia e dependência. Me sinto doente, ainda que sorrindo. E tô sorrindo, apesar do mundo.

Falando em mundo, eu tenho sonhos pra ele. Acho que você os conhece, porque não param de protagonizar meus pensamentos. Creio que você acesse meus pensamentos. Sabe, rola um lance de onipresença quando alguém que a gente ama parte assim, como você. Mas a verdade é que por mais cores que eu use nesses sonhos pra pintar o mundo, vai sempre faltar o tom de vermelho que você usava nas suas roupas e que não colore mais essa casa. Nada é perfeito...

Enfim (suspiros profundos), para as últimas linhas dessa carta, eu te deixo palavras interpretadas por Marisa Monte, que falam mais do que todos esses parágrafos:

'do céu amor vai chover
tua pessoa, Maria.’


A ti, Regina, minha Maria de verdade, todo o amor do meu mundo.
Juju.

Teresina, 09 de abril de 2013, às 17:01


sábado, 30 de março de 2013

...


Há dois anos o dia 02 de abril me 'presenteia' com a realidade, essa coisa de onde a gente não pode correr, embora a gente até pagasse com a alma se preciso fosse.

Os sonhos só me arrebatam no últimos dos meus suspiros, quando o desespero já me exariu e não tem mais fonte pra secar. Eles vem quase como uma recompensa por ter suportado tanta dor. É quando lá do mais profundo abismo sou resgatada.

Sempre foi assim. Mas o tempo, mais cruel do que a realidade, cobra caro a cada minuto avançado. E não há com o que se pagar a não ser com a própria carne, nas coisas intangíveis e mais fundamentais.

Até sorrio quando uma nova revolução solar se inicia, mas sei que depois da festa e dos amigos tem o quarto sóbrio e solitário e a minha cabeça rodando. Nos últimos tempos, tenho arrepio de completar anos. Sei que é um ano a menos de caminhada. E eu ainda tenho tanto pra caminhar...

Tem sido frio o fins de março. E solitários os princípios abris. A solidão da alma entregue, perdida, desolada, companheira

Como, então, não ter nostalgia da infância, onde o tempo parece infinito? E gratuito. Onde não se usa relógios e nem se nota os calendários. Onde o único tempo é de ser pequeno de vivência e grande de pureza.

Já contribuí muito distribuindo esse eu por aí. Especialmente a mim. Queria aposentadoria. De preferência longe, muito longe daqui.

sábado, 2 de março de 2013

fingindo ser o que já sou.



se esse post fosse uma comunidade do Orkut, seria aquela 'já chorei na frente do pc.'

aquelas lágrimas entre um suspiro e outro, quietas e ao mesmo tempo persistentes, ali, no meio da mais absoluta e altiva solidão. elas não querem incomodar ninguém. só querem correr livres. 

difícil não lhes permitir o corredor das minhas bochechas e o soluço aderente. é o que sobra, além dos caquinhos que a gente aprende a juntar pra fazer um novo mosaico, colorido...

eu olho pras coisas que tenho escrito, olho pras palavras que se debatem em mim, olho pros meus dias recentes, mesmo sabendo que tenho de deixá-los no ontem. 'o passado é um segundo coração que bate em nós', mas todo dia me repito que é hora de pegar as malas e ir pro outro lado.

a gente se convence sem se convencer. e vai sobrevivendo. lá no finzinho de cada choro, tem as mãos enxugando o rosto lavado, dizendo: 'dói, mas você sabe que é do caminho.'

às vezes, fazer o corriqueiro se transforma no maior dos nossos desafios: caminhar...

sexta-feira, 1 de março de 2013

velhos/as e loucos/as.


aquelas palavras que teimam em não sair na exata precisão das reflexões. e a gente se vê desarmada. especialmente quando, de tão acostumada a escrever (mais do que dizer) nossa palavra, ela se transforma no instrumento da vida contra um mundo que é campeão em (re)produzir morte.

nossa palavra, nosso empoderamento. nossa bomba nuclear contra as prisões do tempo, das regras, das exatidões de ser. mas nossos medos e anseios (e como ansiamos!) fazem de nossas palavras mortas. não conseguimos mais colocar nas frases o que nossas idades repetem aos nossos passos. e nossos corações estão ali, à beira de um colapso, entre a juventude da esperança e a velhice das obrigações, do que tem de ser feito e do que precisamos responder. estamos velhos e velhas. pior: sentimo-nos velhos e velhas.

estamos no momento de acordos. acordos com os dias, com o espelho, com as responsabilidades, com a paciência e com a falta dela. estamos com um olho no que não podemos (re)fazer e o outro no que não podemos esquecer. todo dia relembrando de onde viemos, de como aqui chegamos, pra onde queremos ir. umas concessões ali, outras coisas das quais não podemos e nem queremos arredar o pé. o tempo todo entre os limites, 'entre as agonias e alegrias de ser'.

a gente sabe que não tem as respostas. e a gente nem tem a pretensão de ter. nosso lance é estar ali, em eterna (des)feitura. queremos estar de pé, por nós, pelos que amamos, pelo mundo. a gente sabe que tem de carregar remos pesados, proporcionais à ousadia de sair do lugar que o mundo nos disse pra estar. e tem aquelas ondas das quais não se pode desviar. e nem tentamos. somos humildes. a gente sabe que erra e se enxerga capaz de mudar. e a gente nunca perdeu essa mania de se repreender. mas é exatamente onde a gente sabe que cresce, ainda guardando força nas nossas meninices, essas que transgridem nosso controle e saem pelo poros.

a gente quebra a cara. recomeça. resiste. persiste. e só sabe que só tem razão de ser porque tem outras coisas que queremos conhecer. se fôssemos crianças, seríamos a creche das caras limpas porém de narizes pintados, com todas as cores esparramadas no chão onde sentamos e partilhamos o que nos mantém vivos e vivas. a gente gosta de chão. a gente gosta da sujeira, porque o que é limpinho e asséptico não abarca nossa imaginação e nossa  falta dessa noção pré-fabricada. a gente faz tudo em casa. e é tudo feito à mão.

a gente às vezes não sabe onde tá indo, ali, naquele específico instante. e a gente bagunça. se bagunça e bagunça o resto. mas sabemos que, do nosso jeito desengonçado, as coisas acham seu lugar torto, porque nada com a gente é reto e acabado. mas a gente anda cansado... porque 'é preciso força pra sonhar e perceber que a estrada vai além do que se vê.' e já conhecemos nossa kriptônita. tantas vezes diante dela a gente se enfraquece. e tantas vezes a gente gastou da força que a gente tinha...

mas a gente vem aqui e escreve pra se empoderar. às vezes a gente vai até o bar mais central da cidade, renovar as energias. às vezes, a gente se encontra numa música. às vezes, numa lembrança. o certo é que se a gente sabe das nossas fraquezas, também conhecemos nossas baterias. sabemos pra onde ir quando a gente quer recarregar. porque a gente sabe que a vida é foda e sem querer a gente perde uns KW por aí.

a gente anda em bando. e se assanha em grupo. e sonha junto. e dá passos sós. mas sabemos que dali a pouco a gente vai tá n'algum canto onde a gente possa cantar. e se não fosse assim, nosso canto seria afinado e dolorido, porque a gente sabe, bem no fundo, que a gente só serve pra desafinar.

a gente já não dança desenfreadamente como antes. estamos descobrindo nossos limites e, de algum jeito, tentamos alargá-los. mas o melhor de tudo isso é que a gente envelhece ao mesmo tempo. e na velhice, enlouquecemos muito e juntos. a gente ainda é muito capaz de perder a condução, a pública e não de qualidade e a da razão, aquela que diz que a gente tem que acordar cedo no dia seguinte. a gente sabe que na ressaca, precisa de atenção e cuidados que dispensava antes, mas esse é o preço que se paga por ser louco e louca na nossa idade. 

tudo um bando de velho e louco. todavia, a gente sabe que dentro de nós, a gente é sol, que morre e nasce todo dia. a gente sabe que existe o dia todinho pra se reinventar. a gente não tem futuro. a gente não quer sê-lo. a gente gosta das horas. por isso que a gente as gasta. e se for com a gente, melhor.

endurecemos sem perder a ternura. e nosso ópio são nossos sonhos e tudo o que a gente aprendeu e envelheceu com eles. só eles que nunca envelhecem. nem a gente, enquanto eles viverem. 

a gente tá velho, mas a gente tem loucura suficiente pra se recusa a ser. 


segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Metalinguagem




Eu me entendo escrevendo
E vejo tudo sem vaidade
Só tem eu e esse branco
Ele me mostra o que eu não sei
E me faz ver o que não tem palavras
Por mais que eu tente são só palavras
Por mais que eu me mate são só palavras


(Mariana Aydar)

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Ponto de partida.

Estou crua. Estou nua. De fato, despida de muito do que já vesti antes. Mas continuo achando que é preciso se encontrar nesse processo de viver. E em resumo: não sou uma pessoa peculiar. Não tenho grandes singularidades. Só sou mesmo o que sinto.

E por saber disso é que, finalmente, eu consigo sentar pra dizer pro meu espelho-papel o que sou.  Sei que isso explica porque choro enquanto escrevo: estou olhando pra mim e geralmente os (des)encontros com o eu tendem a ser os mais difíceis. Mas sou só eu olhando pra o que sobrou. Nem choro porque sobrou pouco ou porque sobraram coisas feias, mas porque coisas sobraram, apesar de.

Eu fui até onde eu nunca, nem no auge da minha lucidez de alguns meses atrás, pensei ir. Na verdade, eu rompi limites encravados na minha pele pela vida toda. Sei, bem dentro d’alma, que ousei e fui muito além de mim. Fui buscar a parte que acredito me complementar fora de tudo o que me acercava com suas placas de ‘NÃO ULTRAPASSE’. Eu ultrapassei e voltei em branco.

Tão absurdo! Mas tão verdadeiro. Eu aceitei os mais importantes desafios que me apresentei dentro das minhas 25 revoluções solares e boa parte do que consegui foi caber numa moldura vazia. No images, no pictures, no body, no nada. Muito nada. Apesar das dores físicas da volta, senti-me catatônica, 80% morta, embora feliz por estar viva.  Nunca foi tão bom voltar pra casa: meu quarto, minhas coisas, o cheiro do meu armário... Entretanto, tudo me deixou anestesiada. Viva, sorridente, mas anestesiada.

Faxinei a vida. Mas não a alma. Doei livros, calçados, joguei o lixo fora, expulsei a poeira que já não se restringia aos cantos. A música que me acompanhava nunca fora tão ‘ambiente’, tocando só pra quebrar o silêncio. Sempre cantarolo com boca e coração enquanto faxino. Dessa vez não fui capaz. Enquanto o mundo fazia barulho no carnaval, eu brincava com um silêncio ensurdecedor. Ao fim de toda a limpeza, ficou só a certeza de não poder, nem por um segundo, olhar pra trás, lá onde meu coração ferido e desenganado ficou.

Os sonhos ainda são minhas cláusulas pétreas, condições da minha existência nesse plano. Eu nem consigo mexer neles, de tão guardados. Intactos. Tão meus... Tanto que sei que podem me esperar, sendo pacientes com meus passos lentos. Mas, por ora, o que há de mais concreto e imediato é o todo dia, o dia todo.


O domingo me permitiu me olhar. O efeito anestésico da minha casa foi superado pelo trivial, aquilo que tenho desde criança: domingo que era antes entre quatro e agora é entre três, mas muito cheio de nós, como sempre foi. Mal posso descrever sem chorar a paz que senti em me ver dentro do carro (que papai insiste em dizer que é nosso), ouvindo American Pie na voz da Madonna (a única cantante que agrada, ao mesmo tempo e por motivos diferentes, aos três habitantes dessa casa). Cantávamos juntos. E eu pude me dar conta do quanto posso ser feliz em alguns minutos. Não há mais dormência. Meu corpo transborda de conforto e paz.

Estou em casa. Estou no meu lugar. E como é bom ter pra onde voltar e onde poder recomeçar.